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Três pianos dispostos em estrela brilharam num firmamento musical


Este Outono tem funcionado como importante barómetro do estado do piano em Portugal. A apresentação do último trabalho discográfico de Bernardo Sassetti em Outubro, a ante-estreia do novo projecto de Mário Laginha, ainda este mês, e o concerto de anteontem no Grande Auditório do CCB, demonstram a diversidade e alcance dos nossos músicos. Tratando-se possivelmente de um dos eventos mais importantes do ano, no que respeita à música portuguesa interpretada aquém das nossas fronteiras, foi ainda um acontecimento inédito, na medida em que três dos pianistas mais destacados da actualidade se juntaram pela primeira vez no mesmo palco. O desafio apresentado a estes três artistas foi o de transcender as delimitações impostas pelos estilos da sua eleição, o jazz e o clássico, entrosando sons, técnicas e sensibilidades num abrangente discurso musical. A música clássica foi um importante denominador comum, dado todos terem tido nela a base da sua formação como músicos. O repertório escolhido contou com composições de quatro consagrados criadores da cultura ocidental - J.S. Bach, Chopin, Ravel e Bartok -, de dois compositores americanos do século XX, Samuel Barber e Alan Hovhaness, e seis composições originais da autoria de Sassetii e Laginha. Foi com os temas dos dois músicos portugueses que se atingiram alguns dos melhores momentos. Aqui a liberdade conferida pela música serviu para estabelecer as maiores cumplicidades, fundindo por vezes os três pianos numa massa sonora única, onde a diferenciação entre as mãos era perfeitamente indiscernível. Em contrapartida, nas interpretações derivadas directamente da pauta, com a justaposição de distintos modos de leitura, realçaram-se diferentes cores e texturas, que resultaram num rico contraponto de tensões e narrativas. Os músicos foram rodando equitativamente em torno dos três pianos, dispostos em forma de estrela, distribuindo o som homogeneamente pela sala, facilitando a inevitável comparação entre as suas abordagens e técnicas. No equilíbrio gerado entre as três energias cada qual brilhou por diferentes razões. Burmester imprimiu uma ressonância lúcida em cada nota que tocou, fazendo-as penetrar na acústica viva do auditório com uma clareza rara, confirmação do cunho inconfundível de um grande mestre do piano. Laginha demonstrou a sua sensibilidade rítmica e swing genuíno, projectando a música no espaço sonoro com a força controlada que o caracterizam, onde uma técnica prodigiosa se subjugou ao sentido daquilo que é essencial na música. Sassetti revelou como a intuição é uma arma potente para comunicar com o ouvinte, complementando o som cristalino dos seus dois companheiros através do seu timbre mais aveludado e introspectivo.
Um dos maiores desafios foi a justaposição simultânea de duas abordagens distintas às Variações Goldberg. Burmester delineou uma leitura dentro dos cânones clássicos, enquanto Sassetti teceu uma sinuosa e pessoal leitura da pauta. Resultou sobretudo quando Sassetti se soltou mais e contaminou a música do génio alemão com o seu próprio discurso musical. Um dos pontos altos deu-se logo no terceiro tema, O Sonho dos Outros, de Sassetti, onde um acompanhamento a quatro mãos possibilitou uma grande viagem aos estados de alma do compositor. A Menina e o Piano de Fuga em Ré Maior expôs Mário Laginha como grande compositor e interprete. No Bolero não foi possível recriar a sua riqueza de timbres, prova do génio de Ravel enquanto orquestrador, mas serviu para encerrar um programa musical criterioso que acabou por deixar o auditório em êxtase.

Rui Horta Santos, in Público, 21/11/2005